quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Doidas e Santas- por Elisa Lucinda




Ontem fui ver Doidas e Santas, peça que reúne textos de Martha Medeiros, estrelada por Giuseppe Oristânio, Josie Antello e Cissa Guimarães, roteirizada por Regiana Antonini.  Pode parecer  triste  o que vou dizer, mas a peça que já ia muito bem ,obrigada a fazer sessões duplas extras , é sucesso retumbante ainda mais depois que perdemos o Rafael, filho da protagonista. O primeiro pensamento pode revelar uma aparente e imediata morbidez da platéia. Estranha curiosidade da humanidade de ver de perto a também grande protagonista da vida real de uma tragédia. Embora no palco o que esteja em foco seja a tragicomédia da humanidade, não é só para curti-la ou bisbilhotá-la que vamos ao teatro agora. Que me perdoem os pessimistas de plantão, mas a solidariedade e a fé na vida são as rainhas desta motivação. Como a Cissa representa para o Brasil alguém gente boa, de pontual sorriso e  da nossa família, primeiro é a consideração  que nos leva a vê-la. Comovidos, nosso ingresso é o nosso abraço, nosso consolo, nossa atenção e nossa cumplicidade à dor de uma mãe que perdeu um filho e em menos de um mês, já está , dignamente, a exercer o seu ofício. E ai é que se concentra o maior motivo e a maior justificativa do aumento da presença do público numa peça, repito, que já estava carimbada pelo sucesso. Não desprezo aqui a verdade cruel que nos mostra a toda hora esta atração que as tragédias exercem sobre a doida humanidade, que corre para ver acidentes, crimes e corpos nas calçadas, e se alimenta da notícia , entre o choque e a fofoca .Não sou ingênua a ponto de não reparar nesta loucura.  Mas  a humanidade que foi ver  a peça após o o atropelamento de Rafael, foi especialmente ao teatro para receber a preciosa lição de superação ao vivo. Pois ,como pode um coração materno esfacelado encontrar mais chão para nos abrigar nele? Onde esta terra emocional, este planeta-gente barbaramente golpeado encontra forças para  nos oferecer seu amor? Com a divina generosidade dos injustiçados, Cissa nos unge com sua coragem. É bom que saibam, os que tais bastidores desconhecem, que nós atores estamos acostumados a esta devoção laboral que nos põe em cena, apesar de uma febre alta, cólicas, cansaços, tristezas e até fraturas internas e externas; Porém, é sabido que a dor da perda de um filho é a maior do mundo. Fere a ordem hierárquica das passagens: Primeiro os mais velhos, e que assim seja! Há aqueles que nunca mais levantam da cama, há os que morrem em seguida de desgosto e profundíssima depressão e há aqueles cuja loucura provocada pela lancinante dor sem remédio , assume a direção da casa e a tudo desmorona: Há os que, porque vitimados pela injustiça ,pela corrupção e impunidade, se convertem numa gosma de ódio e o disparam, entres sorrisos de vingança contra tudo e contra todos. Por fim, há os raros como Christiane Torloni e Lucinha Araujo  que perderam seus filhos, meu pai Lino Gomes que perdeu uma filha e nossa Cissa Guimarães. Isto, só para citar alguns que estão na categoria iluminada; conseguem esticar o fôlego de sua potência amorosa e, no seu processo de auto recomposição nos reconstruir também, vejam  só. Na peça , ela chora várias vezes , ri também e passa do choro pro riso dentro da personagem Beatriz .Cissa, muito bem cuidada pelos seus talentosos colegas de palco, encara os temas amor, filhos, separação, mãe e morte, com a maestria dos sábios e a resistência dos ultrajados. Munida de uma descomunal esperança num mundo melhor, essa moça-jovem-senhora- desdobrável-mulher linda , ainda luta por nós e nossos filhos quando não teme o andamento das investigações e avança com sua verdade e história como instrumentos para punir os culpados e nos garantir um futuro onde a paz seja a notícia. Claro que não há cartilha para se educar um filho direito, mas não precisa mais ninguém morrer para ficar provado que propina, proteção, conivência são os cupins de nossa  sociedade. A despeito de tantos esforços nossos e de muitos outros cidadãos do bem, quadrilha, polícia e família ainda rimam. Pois é, dentro da mesma humanidade que assassina há a que salva. É muito difícil aprender com a dor. Ainda mais uma dor dessa que nem nome tem e transforma os pais em órfãos dos filhos. Mas nós lotamos o teatro para testemunhar que é possível, ainda que sangrando, aprender, crescer e ensinar. Esta cena nos remete aos santos; ao mito do São Sebastião flechado e ainda assim sereno. O teatro recupera quem a ele se entrega. Doida e santa a humanidade assiste ao mistério.